30 outubro 2007

Dona Antônia e Seu Venâncio


Esse texto estava guardado aqui na cuca há algum tempo. Sei lá por qual motivo ainda não tinha colocado no blogue. Sentei-me aqui no computador disposto a atualizar o abandonado diário virtual, mesmo sabendo que poderia ficar torto novamente, já que estou com uma imensa dor nas costas. Aí a chuvinha subiu um ar de terra do interior que me fez lembrar esses dois modelos. Mas para falar de Dona Antônia e Seu Venâncio, primeiro devo explicar como cheguei a eles.

Desde 1981, é registrado no cartório e na macumba que sou afilhado de Jeanette e Miguel. Os dindos que supriram a falta dos meus pais quando estes trabalhavam de 10 a 12 horas por dia. Em nada difere o amor que sinto por eles do amor que sinto pela minha mãe - cortei relações com meu pai há 2 anos - ou pelos meus avós. Até mesmo as circunstâncias da vida que nos afastou, apesar de morarmos muro a muro.

Meus padrinhos me ensinaram o mundo. O mundo que respeita as diferenças e não julga as pessoas pelo tamanho da casa e nem pelo que tem dentro da carteira. Eles me mostraram que aquele pessoal vizinho, dos barracos de madeira, eram iguaizinhos a nós, só que mais explorados. Valores hoje cada vez mais escassos.

Antônia e Venâncio eram os pais da minha madrinha. Moravam em Monte Verde Paulista, no norte do estado, perto de Severínia e Olímpia. E nas férias, ganhavam dois netos japonesinhos: eu e minha irmã. Éramos verdadeiros ETs na cidade, já que o máximo de olho puxado por lá eram dos gaiatos bêbados. Passávamos semanas e nunca - sim, nunca - queríamos ir embora.

A casa dos velhos era do começo do século, e minha fraca memória não permite o relato da data exata cravada na fachada. Na frente, apenas um portãozinho que dava acesso ao corredor lateral. Nesse corredor, duas portas ficavam quase que o dia inteiro abertas para as dúzias de netos que quisessem entrar. Digo dúzias e não é exagero. Só de filhos, o casal tinha 8 ou 9. E uma média de dois netos por filho. Voltando à casa, o corredor acabava em um gigantesco quintal. Dois tanques de concreto, um balcão e um quartinho formavam a edícula. Nesse quartinho, Venâncio guardava a palha de seu cigarrinho diário, logo depois do dia na labuta.

Ainda na edícula, havia um pilão e um rolo de massa, onde Antônia preparava um pão delicioso que nunca vi igual. Mãos mágicas que foram herdadas por todas as filhas, cozinheiras de primeira linha. Ao fundo do terreno, um extenso pomar e um galinheiro garantiam a sobremesa da molecada e o frango assado do domingo.

Da edícula, acessava-se a cozinha. No canto, o fogão de lenha que era um verdadeiro altar. Coisas sagradas saíam de lá - aquele pão, inclusive - e provavelmente foi ali onde tive minhas primeiras aulas de refogado (mesmo que inconscientemente). Da cozinha, passávamos à sala de jantar e, logo em seguida, à sala da TV. O primeiro quarto, à direita, era onde o casal dormia. Os outros dois, um à direita e outro à frente, que dava com a janela para a rua, abrigava os constantes hóspedes.

Eu era pequeno, mas lembro-me de flashes das histórias de Dona Antônia e Seu Venâncio. De como se conheceram e se casaram. Da vida sofrida que tiveram e de como suaram para criar os filhos. Das loucuras que o Venâncio fazia para ver o seu Corinthians (numa aula de corinthianismo, o velho viajava mais de 5 horas para ver o Timão no Pacaembu e voltava logo após a partida). Mas nunca, nunca mesmo, escutei nenhum dos dois reclamar de qualquer dificuldade.

Hoje, depois de 15 anos ou mais sem vê-los, aqueles causos sempre voltam quando estou nas horas mais difíceis. Alentos e lições aparecem, juntamente com a saudade do pãozinho no forno e o café passado no filtro de pano. As milhares de coisas que me aconteceram por lá quando moleque estão na minha alma como cicatrizes de catapora.

Consta que a casa foi demolida... Podem ter derrubado a representação física, mas toda vez que olho para meus padrinhos ou meus irmãos - filhos dos dindos, obviamente -, reerguem-se aquelas antigas vigas e paredes que construíram e ainda constroem nossos caráteres.

Para Paula, Lúcia, Miguel (meus irmãos) e Jeanette e Miguel.


5 comentários:

  1. Bonito, japonês...

    Bela homenagem.

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  2. muito sensível

    com certeza fazem parte de vc, com ou sem paredes de concreto

    mas q é de partir o coração é

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  3. Anônimo11:00 AM

    Muito bonito.
    Claro que o Corinthians tinha que ser a linha que costura tudo.

    E aí, vamos espancar um cambista hoje???

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  4. carai, meu comentario sumiu...

    enton, ô loco... até chorei! bacana bacana!!


    hahahahahaha, lembra da igrejinha?! hahaha

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  5. Genial. Não dá pra falar outra coisa.

    Memória é uma coisa fenomenal. Em particular, a memória olfativa é minha preferida, já que ela nos faz visualizar cenas, lembrar situações e pessoas até melhor do que a memória visual.

    Parabéns.

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