04 dezembro 2008
Não largo da memória
*título indevidamente inspirado no nome do bloco carioca "Largo do Machado mas não largo do copo"
O post de ontem da Evinha me trouxe novamente algumas lembranças sobre infância. Ao falar dos lixeiros pedindo caixinha de natal, ela foi criança e disse "boa noite, lixeiro", refugando a idéia de xingá-los por causa da gritaria promovida pela rua. Lá em casa, o prêmio de fim de ano nunca foi muito volumoso, mas minha mãe deixava uma moeda até para o cara que ia entregar leite. O que eu gostava mesmo era do caminhão de gás. O alvoroço gigantesco - havia buzinaço, gritos e campainhas sendo massacradas - era acompanhado por minha irmã e eu, ambos sentados na janela da copa que dá para um corredor cujo eco é fenomenal. O vizinho devia adorar...
Mas não é da minha infância que eu quero falar. O papo é sobre os primeiros dias dessa tão combalida cidade de São Paulo (estão acompanhando a série Hora da Patrulha?). Pesquisava algumas imagens pelo google e me deparei com diversas fotos antigas da capital paulista. Impressionei-me, por exemplo, com a esquina da Avenida São Luiz com a Ipiranga. A rua, toda arborizada e com um casarão onde hoje é o Edifício Itália, parecia ser de uma cidade interiorana. Passeando um pouco mais pelas fotos e com o google maps a tiracolo, tive a certeza: São Paulo já foi belíssima!
Se hoje os estilos das construções se misturam caoticamente, se os prédios antigos estão todos deteriorados pela falta de manutenção e se os próprios paulistanos viram suas costas para o Centro, antigamente a região era um burburinho. Ridiculamente pequena se comparada ao país no qual se transformou a vila do Anchieta, a certo momento - mais precisamente no começo do século XX - São Paulo tinha o potencial necessário para abrigar os principais projetos arquitetônicos europeus trazidos pela elite que se firmava. E não era só a gente da grana que mandava bem nos respectivos barracos. Os trabalhadores também tinham bom gosto na hora de erguer seu teto, haja vista as casinhas no estilo colonial dos bairros àquela época periféricos, como o Cambuci, Bom Retiro e Barra Funda, entre outros.
No meio de tudo o que vi, no entanto, o meu lugar preferido não tem nenhuma grande obra da arquitetura ou da engenharia. É o Largo da Memória, que dá de fundos para a 7 de Abril (antiga Rua da Palha) e encontra do outro lado com a João Adolfo, em frente à Praça da Bandeira. A João Adolfo, aliás, tem um grande buteco, o Ben-Hur, e, logo ali do lado, no fim da Álvaro de Carvalho, há outro com semelhante grandeza, o Verdinho. Nos arredores, existem muitas quitinetes habitadas por migrantes nordestinos, o metrô Anhangabaú e uma meia dúzia de mercadinhos dominados pelos coreanos e chineses.
Vê-se que o Largo, desde que o mundo é mundo, sempre foi ponto de encontro para os mais diversos agrupamentos sociais, e seus habitantes atuais comprovam a vocação. Em volta de seu obelisco, havia uma biquinha onde os viajantes recarregavam seus cantis - vale lembrar que ali era uma das extremidades da cidade no século XIX, e de lá saía a Estrada dos Piques, uma das principais vias de acesso ao interior. Nesse mesmo período, consta que no espaço onde fica a estação de metrô era realizada a comercialização de escravos negros. Antes disso, no século XVI, quem vivia sob as correntes brancas e era posto como produto eram os índios.
De modo que a beleza do Largo da Memória não está exatamente na sua plasticidade, mas em como sua história preserva todas as marcas dos povos construtores de São Paulo. Índios, negros, elites, nordestinos e imigrantes, todos estiveram ou estão ali. Largo da Memória... Não há melhor denominação para um lugar que insiste em lembrar os paulistanos daquilo que mais lhes anda faltando ultimamente.
eu tenho boas lembranças desse pedacinho de cidade...
ResponderExcluirAh, Piratininga...
ResponderExcluirUm dia todo nome dado a tudo fazia sentido.
Hoje em dia parecem querer pegar o 'sentido' e jogar no lixo. E assim fazem!
Ontem passei na Rio Branco, estão restaurando a Mansão dos Prates. Coisa linda. Daí você olha a esquina do outro lado... uma auto-peças gigante. Típico da não-mais-Piratininga.
Belíssimo post.