25 abril 2008
Figuras emblemáticas
Já havia falado da Heitor por aqui, quando a desvirginaram e abriram um baita buraco bem na frente de casa. O remendo, aliás, está afundando e daqui a pouco vira uma cratera. Mas o caso é que essa aprazível rua da zona oeste paulistana teve em seu passado glorioso algumas personalidades jurídicas, como diria meu cumpadre FH.
Essas figuras, de certa forma, influenciaram na conduta de muita gente por aqui, ou pelo menos na minha. São tipos que só existem por esses lados de cá do rio, já que no nosso nada glorioso "centro expandido" eles seriam escorraçados. Vejamos alguns:
- João Bêbado: o pinguço andava, com a disciplina de um espartano, em perfeitos zigue-zagues no caminho do bar do São Domingos até seu barraquinho na entrada da favela. Passou anos e anos sob o efeito da cachaça e parecia o Roberto Bolaños. Nas festas juninas que armávamos na garagem do meu padrinho, vinha sempre atrás do quentão. Eu morria de medo dele, mas ao mesmo tempo sentia uma certa simpatia por aquela alegria constante. Deve ser por isso que virei um beberrão. Já ele, infelizmente, virou crente e encaretou.
- Jorjão: xará do bicheiro dono da boca, esse era outro que gostava de um mé. Mas sua particularidade era outra. Sabia todas, TODAS, as letras de Elvis Presley. Claro que num macarrônico inglês. Sua favorita era "Suspicious Mind", que cantarolava todo feliz para a molecada da rua, que sempre pedia uma palha. Morreu gloriosamente de cirrose. Me fez gostar de rock e acostumou meu nariz com o cheiro de pinga.
- Tio do Algodão: esse não cheguei a lembrar do nome. Era um cara franzino, meio negro, meio índio, meio nordestino. Passeava por todo o bairro vendendo seu algodão-doce, que quase ninguém comprava. A cada três buzinadas, cantarolava um verso da canção "Verde E Amarelo", do rei Roberto Carlos (fom-fom-fom/Veeeeerde e Amarelooo/fom-fom-fom/Azul e Branco também/fom-fom-fom/Meu Brasil é brasuca/fom-fom-fom/Esse cara é bom de papo e de cuca). Dá para imaginar o porquê da minha apologia ao Robertão.
- Tião: neguinho impagável, era o pedreiro oficial da Heitor. Fez praticamente todas as calçadas da rua (todas elas quebravam com menos de um mês) e uma série de remendos pelas casas. Chegou a morar um tempo no porão do meu padrinho e tinha um filho da minha idade, muito bom de bola. Dava corretivos nas crianças com galho de pitangueira e também curtia uma caninha. Mas era na boemia que se destacava. Vivia no boteco ou atrás de algum rabo-de-saia. Um brasileiro de direito e de fato, e talvez seja por causa do Tião a minha paixão pela vida noturna.
- Juarez: esse moleque transbordava alegria e bondade. Era um exemplo pra todos os boyzinhos aqui da rua (no caso, nós que morávamos nas casas). Vendia deliciosos "solvetes" de água, açúcar e corante e tinha uma bicicleta com freio no pedal, que vitimava inexperientes. Jogando bola era uma piada. De costas para todos os lances (sim, todos), ele fazia duas embaixadinhas e chutava a bola, numa espécie de voleio sem sair do chão. Apesar de querido por todos aqui, sofria na mão do meu vizinho escroto (esse sim um playbou da pior espécie). Saiu daqui e se mudou para Jundiaí, se não me engano. Um trabalhador que merece coisas boas. E o pai do playboy que morava aqui do lado morreu de câncer no cérebro...
- Ronaldo: o ladrão mais querido da rua. As velhas viviam salvando a pele dele quando chegava a farda e descia o sarrafo no coitado. Era o que chamamos de ladrão honesto, que roubava na humildade e longe da área. Mas era um tanto quanto azarado. Certa vez, ao fugir da polícia com uma moto, resolveu cortar caminho por dentro de um posto de gasolina. Não viu que o lugar já estava fechado e quase morreu enforcado na corrente. Também adorava crianças, comigo incluso, e sempre que podia (e quando não estava fugindo da lei) batia uma bola conosco. Era, sem saber, um contestador do sistema, um Che Guevara do bairro.
- Virgulino Português: esse é o único que ainda está aqui. Na verdade, é exemplo para ninguém seguir. Mas não deixa de ser figura. Mata gatos (certa vez, levou um até Cotia e o desgraçado voltou), furava bolas e uma de suas principais excentricidades era lavar o carro toda vez que chegava em casa, principalmente a parte de baixo dos pneus (êh, portuga...). Porém, a sua grande e inesquecível história foi quando ainda era um pouco mais sociável e resolveu pagar de malandro pra cima da molecada no rolimã. Foi querer sacanear um garoto e cortou caminho na curva. Só que não percebeu que logo depois havia um Passat estacionado. Acabou debaixo do carro. Numa outra ocasião (essa talvez mais hilária), correu atrás de um ladrãozinho que tinha roubado a bolsa de uma coroa. Quando pegou o azarado na porrada, o rapaz chegou a pedir desculpa para escapar da surra, no que o Portuga respondeu: "Dixculpe u c'raleo". E finalizou o pobre coitado.
Texto dedicado a Migué, Guinho, Gutão (Véia), Bôia, Sarandi, Dô, Essias (Galo Cego), Cal, Marquela, Digão, Celão, Dingão, Márcio e todo o pessoal da Favela Jóia que fazia da Heitor o seu clube (da bola, do samba, da festa e da alegria). E para minha irmã, que hoje faz anos.
me fez lembrar do velho Augusto que só dizia: "vaitodomundotománocu"
ResponderExcluirsempre achei tão honesto...
Muito foda tudo isso. Pior que no tal do centro expandido nem seriam mais escorraçadas: seriam ignoradas.
ResponderExcluirÉ pra isso que serve o muro do condomínio...
Dá-lhe Rio Pequeno, Japonês!
Evinha, aqui a Véia chama Augusto tb hahahahahaha...
ResponderExcluirFilipe, já visitaste o Corinthians do Rio Pequeno? Vale a manhã de domingo.