30 setembro 2011

Caminho da roça


Há coisa de duas semanas estive no Parque do Trote, uma quase-fazenda encravada na gloriosa Zona Norte paulistana, para prestigiar mais uma edição do evento Revelando São Paulo. Trata-se de uma iniciativa da secretaria de cultura estadual para promover e manter vivas as tradições do interior paulista que, apesar de seus equívocos eleitorais nos últimos anos, possui grandes tesouros hoje pouco explorados e valorizados. O troço se dispõe num amplo espaço e sua programação inclui milhares de barracas com delícias vindas de inúmeras cidades - por lá, me esbaldei e comi feito um ogro -, além de um palco para apresentações que iam de quadrilhas a festejos religiosos, passando até mesmo por danças indígenas e a inclusão dos bolivianos que são muitos ali pelos lados da Vila Maria.

Meus holofotes, no entanto, disparam ao encerramento do evento, que contou com grupos de jongo e o glorioso Samba de Pirapora do Bom Jesus, este um ritmo que já faz parte de mim. A noite fria do último domingo de inverno foi rapidamente revertida quando a negrada quilombola subiu no palco para levantar a poeira e fazer o povo balançar com os atabaques. A cada ponto cantado, mais gente se aglomerava em volta do batuque, as mulheres rodavam as saias e uma energia inexplicável nos purificava como um banho de cachoeira.

É curioso, para não dizer hilário, ver essa emanação de forças extremamente rurais aflorando em plena capital, onde tais manifestações perdem cada vez mais o sentido por conta da impessoalidade e da alienação que infesta os grandes centros urbanos. Durante um apanhado de minutos, garanto que todos se contagiaram pelos ensinamentos dos pretos velhos, ali representados por uma juventude que não deixa a peteca cair e entende a responsabilidade de fortificar cada vez mais nossas raízes para combater o emburrecimento imposto em ritmo frenético pelas TVs, FMs e jornais.

Vale um longo parêntese: a partir dessa constatação, vislumbrei a trajetória do povo que me dá origem e que me causa cada vez mais asco. Todos ali tinham um elo com o seu passado, retransmitido de geração em geração para que não morresse o trabalho dos antepassados e também a razão de sua própria existência. Pensem, por um momento, o que há de valor na cultura nipônica, principalmente naqueles que vieram ao Brasil. Salva-se a culinária, que também foi revirada e desvirtuada depois que virou moda, e nada mais. Nunca vi, por exemplo, minha avó ensinar ritos a minha irmã ou as minhas primas. Ensinou, no entanto, que as mulheres devem ser submissas a seu marido. Nunca meu avô me fez aprender músicas que marcaram sua vida, mas ele vivia repetindo que eu precisava trabalhar para ganhar dinheiro.

A viagem não pára por aí. Automaticamente, associei toda a falta de valores dos imigrantes japoneses no Brasil aos colonos norte-americanos. São muito parecidos os motivos de suposto orgulho e admiração desses dois povos: a existência de uma tal honra bastante contestável por ser baseada em preconceitos absurdos, a ganância excessiva pela grana e uma postura de superioridade escamoteada. Ao fim de toda essa digressão, quando o último bumbo se calou e a realidade do caos urbano voltava a ser nítida, agradeci por ter sido criado bem longe dessas idiotices todas e, se não tenho negritude no sangue, sou crioulo de alma e coração.

Acho que a cidade de São Paulo não mais comporta uma onda constante de brasilidade a esse nível. Tais manifestações são pontuais e provavelmente ficarão relegadas a meia dúzia de espaços, geralmente bancados pelo poder público por pura obrigação e por iniciativa de outra meia dúzia de quixotescos. É isso ou a revolução.

P.S.: no momento em que escrevo essas palavras, Stevie Wonder faz um show histórico no Rock in Rio, tocando "Garota de Ipanema" e "Você Abusou". Brasil, senhores, um banho de Brasil.

2 comentários:

Adir disse...

Pois é, amigo, esse evento se não me engano deve ser o décimo segundo ocorrido na capital dos muares paulistas, assim que o Zé Tilápia deu linha para concorrer com a grande fodona Dilma, um tal de Goldman assumiu essa merda de Estado, e sua primeira 'primadona estadual' com escritórios no Parque da Água Branca, simplesmente mandou tirar de lá esse primor de Revelando São Paulo que desde seu primeiro ano foi uma das coisas mais badaladas lá!
Parafraseando aquele misógino da Band, UMA VERGONHA!

evao do caminhao disse...

Você é que não percebe o tanto de tradição oriental que habita sua carcaça... Esse fim de semana tive provas cabais disso.