17 maio 2013

Coringão do Paulistão - parte II


Transcrevo mais um belo texto publicado no Jornal da Tarde, no mesmo encarte em que estava a mensagem de Adoniran Barbosa em comemoração ao título da libertação de 1977. Este aqui é extenso, mas lindo e riquíssimo em informações, e de autoria de Elói Gertel - destaque para lições do grande e insuperável Neco. Que sirva de inspiração para o próximo domingo, na decisão mais importante deste ano. VAI CORINTHIANS!

*nota: mantive as grafias "Coríntians" e "corintiano" utilizado pelo jornal.

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A história do grito de um povo
Recordações, velhas páginas de arquivo: o Coríntians se explica nos seus heróis.

Agora você já pode dormir suas noites em paz, amigo Wilson, sem prensar nunca mais que o grande culpado por esses 22 anos de angústias, derrotas e traumas que envolveram as onze camisas de todos nós. Tire sua bandeira da gaveta, beije-a, não se iniba com as lágrimas, saia para a rua e grite: Coríntians, Coríntians...

É o mesmo grito, calado há tanto tempo em seu peito, mas perceba como o eco é mais forte. Assim como todos os leitores destas linha, você também é um dos personagens do mais belo capítulo de nossa história, concluído com a vitória de hoje.

Um capítulo que tem no amor, e não na tristeza, seu grande herói. Não há notícias, no mundo da bola, de que em alguma época um time tenha enfrentado um desafio mais difícil, penoso e longo. Para sair, a cada tropeço, a cada obstáculo, mais forte ainda. Superando seu próprio futebol, transformando-o em figura secundária.

Por isso, Wilson, permita que o apresente aos amigos que festejam ao nosso lado, em toda a cidade, não apenas para que você esqueça de vez essa sua incrível e injusta autopunição, mas também para mostrar a todos que a história do Coríntians não é feita de nomes, datas, resultados ou títulos, amarelados em velhas páginas de jornal. Ela é feita de sentimentos, de vida.

Um pedido, a Deus, no alambrado do Pacaembú. Ano: 55

Os avós deWilson-San, com a família, vieram para o Brasil no primeiro navio de imigrantes japoneses que chegaram aqui em 1908. Ficaram em São Paulo, começaram vida nova e, aos poucos, estavam integrados. Certo dia, o velho pai resolveu levar todos para ver um jogo de futebol, esporte que os brasileiros tanto gostavam e falavam.

Pais, mãe, filhos, noras e genros, lá foram eles para o estádio. Resultado: quando Wilson nasceu, o primeiro brasileiro da família, na porta do quarto de sua mãe, na maternidade, estava pregada uma camisa branca do Coríntians. E no começo da década de 50, o jovem Wilson era um torcedor respeitado e querido nas gerais da cidade. 

Era ele, o "japonês corintiano", em seu MG conversível, quem comandava os corsos na avenida São João, rumo ao Parque São Jorge, nas comemorações pelas grandes vitórias e títulos que o Coríntians conquistava. Invadia o campo, carregou Luizinho nos ombros na inesquecível tarde de 6 de fevereiro de 1955, mas deixou os estádios alguns anos depois, por sentir-se culpado.

- Naquele jogo, em que conquistamos o título de Campeões do Centenário, eu estava no alambrado, torcendo muito. Quando o Palmeiras empatou fiquei nervoso demais, tive a impressa de que perderíamos e, nos minutos finais, disse comigo mesmo: 'Meu Deus, se o Coríntians for campeão hoje, pode ficar dez anos sem ganhar um título'.

- O problema todo, e isso não me deixa dormir, é que não sei se repeti duas ou três vezes esse pedido, sempre que o Palmeiras atacava. Não consegui, depois, continuar indo aos jogos. Em casa, quando o Coríntians perde, todos choram e eu me sinto culpado. Não mereço ver nossas batalhas, pela desconfiança que tive no time, nos últimos minutos.

Ouvi essa história, contada pelo próprio Wilson-san, na noite de 22 de dezembro de 1974, num pequeno bar japonês da rua dos Estudantes, na Liberdade, onde eu e meu amigo Tom procurávamos nos embebedar, longe de tudo, para esquecer a tragédia de algumas horas antes, no Morumbi, quando o Coríntians perdeu o título de 1974. 

Ele era o único freguês no bar, bebendo saké, e tentou nos consolar contando sua história. Choramos os três, como toda a cidade. Depois nunca mais vi Wilson.

Nossos olhos não acreditavam naquilo que viam

Ah, companheiro que não esqueço, por que duvidar tanto do Coríntians de 1954, time que a maioria dos fiéis de hoje não viu jogar, mas cuja magia respiramos por tantos e tantos anos, como o oxigênio necessário para mantermos a própria vida, como amor às onze camisas brancas, a cada jogo, apesar de tudo, até a vitória de hoje?

Que time era aquele?

Eu perguntava, ontem, desesperado entre velhas e frias páginas de arquivo, incapaz de encontrar alguns dos nossos em condições de me responder alguma coisa em vez de chorar no momento de recordar. Foi quando me trouxeram sua carta, Victorino, pulsando de sentimento em cada palavra, de paixão em cada linha, lembrando o que lhes aconteceu há tanto tempo.

'Corria o ano de 1954. Portugal era o meu berço natal, 9 anos eram toda a minha existência, e o Brasil a minha esperança. Meados do campeonato, o título de 100 anos em jogo, disputado a ferro e fogo, os meu pequenos e inocentes conhecimentos de futebol levaram-me pela primeira vez a um estádio, conduzido pelas mãos de meu avô, também português e convicto torcedor da Portuguesa. 

Eu queria sentir bem de perto o deslumbramento e as emoções do futebol e meu avô, evidentemente, demonstrava sua intenção e procurava influenciar-me, pois sabia que eu não tinha camisa nem bandeira e, por lógica, seguiria a tradição. Deu um lado, vi um time de cores vibrantes e bonitas, a Portuguesa, cores que me faziam lembrar a bandeira pátria; do outro lado, o preto e branco, cores que não ofuscavam os olhos.

Comecei a sentir que deveria haver uma força estranha e inexplicável impulsionando aquele time de cores discretas para frente; a garra daqueles rapazes era arrasadora, os ataques desfechados contra o gol inimigo eram fulminantes; qual aríetes de guerra, eles fustigavam sem cessar; camisas coladas ao corpo suado, eles enlouqueciam o adversário que se sentia submisso e impotente.

À minha volta e por todo o estádio, um grito uníssono e brutal: Coooooríntians... Inconscientemente, com o correr do tempo, fui incorporando aquele estado de alma e a voz, no início fraca e tímida, ao final já era a plenos pulmões: o meu grito tornava agora o grande grito ainda mais forte'.

E o que via aquele menino, dentro daquelas camisas, que jamais pode esquecer?

'Nos pés do líder Cláudio iniciava-se a apoteose: a bola vinha certeira, precisa, sem margem de erro. Um negro forte e impetuoso saltava e, com um fantástico golpe de cabeça, aninhava a bola no fundo das redes adversárias. Era gol de Baltazar! E Luizinho? Ah! que moleque, corpo franzino, um pigmeu, um pequeno diabo, assombrava os atléticos e rústicos super-homens, pondo-os por terra com seus dribles, fazendo-os beijar a grama.

Idário! Que grande coração não deveria ter aquele jogador! Ele simplesmente matava os adversários, espremendo-os, afugentando-os. Goiano, ao seu lado, com uma incrível e inesgotável força; Gilma, segurando os bólidos mortíferos e indefensáveis; o estilista Roberto, o vibrante e oportuno Carbone. O Simão, o Homero, o Alan, o Nonô e o jovem Rafael.

Formavam um grupo de homens que superavam a ausência de uma técnica mais apurada com uma garra quase sobrenatural. Nunca se consideravam batidos. Muitas vezes, os nossos olhos não acreditavam no que viam: tudo parecia perdido, nem diante da mais otimista expectativa seria possível chegar à vitória.

Mas de repente, nos últimos suspiros da partida, o arco inimigo era estourado; caia uma vez, duas, e chegando às raias do absurdo, até três ou quatro vezes!'

Que Coríntians é esse, de imigrantes, pretos e gentinha?

Obrigado pela carta, irmão Victorino, um abraço de todos nós, mas uma coisa, que também não vi então, passou despercebida àquele garoto de 9 anos: no banco de reservas, não tínhamos um técnico, mas um igual, capaz de tanto tempo depois, como um feiticeiro aliado aos deuses da bola e do amor, reviver a mesma vontade. 

Vontade inexplicãvel para aqueles cinco homens que, apesar do estado de sítio decretado pelo presidente Nilo Peçanha, por causa da agitada campanha para a sua sucessão, tiveram coragem de se reunir numa esquina do bairro do Bom Retiro, num dos últimos dias de agosto de 1910, sob a luz de um lampião. 

Confundidos com revolucionários, foram obrigados a correr, um para cada lado, quando soldados a cavalo puxaram a espada e avançaram. Mas eles não desistiram, imitando sem saber os habitantes de Corinto, cidade grega convertida ao cristianismo pelo apóstolo Paulo, que jamais se dobrou a qualquer desgraça, motivando, séculos depois, o nome que universitários ingleses deram ao time de futebol que formaram: Corintian Team, de Londres.

Foi esse time que destroçou todos os outros existentes por aqui no começo de 1910, o inspirador dos nossos cinco amigos; um pintor de paredes, três ferroviários e seus companheiros - barbeiros, charreteiros, artesãos, pequenos comerciantes, gente miúda que na maioria tinha poucos anos de Brasil, para onde vieram criar um lar, uma vida.

Eles fizeram reuniões à luz de velas que o vento insistia em apagar, na casa do barbeiro Salvador Bataglia, que convenceram a lutar pela causa e cujo irmão, Miguel, foi eleito o primeiro presidente; passaram listas e mais listas à procura do pouco dinheiro que sobrava no bairro; costuraram uniformes com sacos de farinha de trigo, viram as primeiras camisas compradas com tanto sacrifício perdes a cor creme e ganhar o doce branco de hoje.

Eram pobres, quase todos assalariados, lutando pela sobrevivência, como o povo que lota as gerais em nossos jogos de hoje; e isso explica o crescimento e a grandeza do Coríntians. Foi o primeiro clube pobre do Brasil, admitia pretos, admitia soldados, seus jogadores eram quase todos operários e o futebol de São Paulo, naquela época, era coisa de gente rica.

Eu leio aqui, num velho recorte de revista, que na década de 1910 "os jogos se realizavam no campo do Velódromo, elegante lugar de reunião da alta sociedade paulista. Só jogava bola quem fosse filho de fazendeiro, empregado do alto comércio ou estudante de nível superior.'

E então veio o Coríntians, saindo da várzea do Bom Retiro, para romper com tudo isso. Com ele, o povo passou a poder jogar futebol. Não era mais a "gentinha" de um bairro, como era tratada pelos donos do esporte até então, mas de toda a cidade: italianos, portugueses, espanhóis, imigrantes, paulistas pobres e ex-escravos, trabalhadores braçais, que começavam a transformar, com seu trabalho, a provinciana cidade no que é hoje, um Coríntians gigantesco de todas as religiões, raças, preto e branco.

É um Coríntias de amor, fibra, sem comparações

Em 1914, conquistou seu primeiro título, sem nenhuma derrota, façanha inédita na época. Era o melhor e mais popular time da cidade, e quem poderia controlar aquela fama? Os jornais da época, que releio agora, contam que a poderosa Associação Paulista de Esportes Atléticos não queria aceitar o Corintias, que ficou sem disputar o campeonato de 1915.

Sua origrem era muito humilde, sua gente também. Para a elegante APEA, era demais. Neco já era um ídolo nessa época e foi ele quem me contou, pouco antes de morrer:

- Eu pagava dois mil-reis por mês para jogar no Coríntians. Quando não tinha, tirava o dinheiro da bolsa da minha mãe. O Coríntians era pobre, como sua gente, mas já era uma alegria. Depois dos jogos a gente saía abraçado com os torcedores, íamos jantar na casa de um ou de outro, sempre de bonde.

Neco, hoje, é muito mais do que aquela estátua que está no meio do Parque São Jorge, com seus títulos: campeão paulista, pelo Coríntians, em 1914, 1916, 1922, 1923, 1924 (primeiro tricampeonato), 1928, 1929 e 1930 (segundo tricampeonato), campeão brasileiro com a Seleção Paulista em 1922 e 1923, campeão sul-americano, com a Seleção Brasileira, em 1919 e 1922.

Foi ele quem criou a mística do jogador corintiano, que ajudou a transformar, com seus companheiros, a nossa camisa em legenda. Eu o ouviria, por mil noites seguidas, com a mesma emoção.

- Em 1919, depois que ganharmos o Campeonato Sul-Americano com a Seleção Brasileira, o Arnaldo Guinle, um dos donos das Docas do Rio de Janeiro e diretor do Fluminense, me ofereceu 100 mil cruzeiros de luvas e mais um emprego para trocar de camisa. Eu não ganhava nada aqui, mas respondi: por nada desse mundo eu deixo o Coríntians.

Em sua chegada, aqui, foi carregado em triunfo. Cumprimentado pelo governador Altino arantes, foi a pé do Palácio até sua casa, pois não tinha o dinheiro do bonde. E ao chegar no seu emprego de marceneiro, em Santana, estava despedido por faltar muitos dias.

- Um dia resolvi que deveria ser o capitão de nosso time. E para impressionar, depois de um treino, avisei: ou vocês me deixar ser o capitão ou vou para o Palestra. Quando cheguei em casa, de noite, papai já estava sabendo da história e disse: se você vai para o Palestra mesmo, não precisa nem passar da porta.

As histórias de Amilcar Barbuy, Rodrigues, Tatu, Tuffy Neugen (o Satanás), Grané (o canhão 420), Del Debbio, Perez, o velho Rafael, Guimarães, Rueda, Gambarotta, Filó, Nerino, Rato, De Maria, Gambinha, Aparício, Munhoz, Jango, Dino, Chico Preto, Augusto Brandão, Jaú, Milani, Lopes, Teléco, Servílio e todos os outros, da geração campeã de 54, não são muito diferentes da de Neco, apenas variam de intensidade. 

Neco não estava mais presente quando conquistamos os títulos de 37, 38 e 39 (terceiro tricampeonato), viu de longa as conquistas de 41, 51, 52 e 54, sofreu como todos nós de lá para cá. Mas seus filhos estão gritando por ele, Coríntians, como o jovem Uriel Fernandes Filho, que está chorando de alegria ao meu lado.

Pelo Coríntians, por ele e por seu pai, o Teleco, nosso maior artilheiro, 243 gols em 234 jogos, que ergueu a taça de campeão em 1937, 38, 39, 41 e que hoje, aos 63 anos, ganha mais uma. Teleco é o homem que cuida da Sala de Troféus do Coríntians, guardados com carinho porque cada um deles representa a mesma raça, fibra e amor que sentimos hoje, com este Coríntians campeão."

2 comentários:

Filipe disse...

"a história do Coríntians não é feita de nomes, datas, resultados ou títulos, amarelados em velhas páginas de jornal. Ela é feita de sentimentos, de vida."

É muito simples de sentir, e quarta-feira agora tivemos essa vida sendo cantada, no tenebroso assalto que deveria envergonhar tanto a anticorintianada débil mental quanto os dissimulados boqueteiros. Não envergonha justamente porque esse pessoalzinho não consegue compreender a assertiva acima reproduzida (e dissimulam também o ofuscamento que causa na alma observar a realidade da assertiva em questão).

Azar de quem não é CORINTHIA.

À BOA GUERRA!!!
É DOMINGÃO!!!
VAI CORINTHIA!!!
POR SÃO JORGE!!!

Filipe disse...

(Aliás, a história de Wilson-san é um estudo fantástico de mentalidade. Podemos compreender através dele como o CORINTHIA agrega culturas e, de fato, tem a capacidade de ser universal, como quase nada ou mesmo nada que a humanidade já tenha conseguido criar. E Neco, então? O fato do pai ter quase deserdado o filho por conta de um absurdo que jamais aconteceria nos demonstra quão agregado o Corinthia já estava às mentalidades, logo de início. Ora, o Corinthia é fruto do Povo, é demanda deste Povo, o que torna o fato natural. O contrário disso é que seria antinatural. Essa antinaturalidade está presente, e é a espinha dorsal, nas lavagens cerebrais que acabaram por formalizar todos os nossos 'rivais').

É DOMINGÃO!!! VAI CORINTHIA!!! POR SÃO JORGE!!!